domingo, 29 de março de 2009

Sala

Eu tossia repetidamente.

A senhora ao meu lado transmitia uma insatisfação em existir que poderia até dar em convulsão. Ela tinha três ou quatro pessoas a acompanhando, não deve ser fácil ter que mobilizar tanta gente pra ir ao hospital.

O rapaz de belas pernas era acompanhado por duas senhoras bem maquiadas e com botox bem aplicado, só quem entendia do assunto saberia que a amenidade das rugas era fruto da famosa toxina botulínica.

Mais a frente, achando que não tinha a seqüência de gestos acompanhada por ninguém, estava um sujeito a limpar a sujeira difícil de seus dentes, com a mão mesmo. Dedo mindinho boca a dentro, lábios esticados para o lado e o semblante de quem tem dificuldade em agarrar o alvo. Logo em seguida, o mesmo dedo ao nariz, pra conferir a procedência do que os dentes tão bem guardavam. Sujo, estranho e desatento, foi o que pensei. Eu ri, se ele visse pensaria imediatamente que se tratava de um flagrante. Ele não viu.

Chamaram-me de dentro do consultório. Quando entrei cumprimentei aquela pessoa que julguei ser o médico. Pequeno, assanhado, mal humorado e com olhar desesperado. Desejei-lhe uma boa tarde e parti para a narrativa dos sintomas.

Tenho tossido, tenho tido febre, meu nariz fica assim constantemente, meu rosto dói, tenho dores no corpo, meu pulmão não está cheio nem está vazio, entende?

O ‘doutor’ mediu minha pressão, me auscultou e anotou no papel que eu tinha virose. Eu suspeitava, afinal gripe é uma virose. Só ainda não me convenci disto, achei tudo muito rápido para ser verdade.
Em seguida, fui encaminhada para uma sala curiosa, em disposição e em cheiro, cheia de camas de hospital e cortinas. Disseram que tomaria aerosol e depois poderia partir.

Foi engraçado tomar ‘Tylenol’ que vinha dentro de um saco pequenininho ouvindo a auxiliar cantando “Vamos fugir” e o ‘doutor’, encarando aquilo como cantada. Como era de se esperar aquele ser de diploma questionável, reagiu ao que tomou como cantada de forma extravagante e constrangedora. Bradando a quem quisesse ouvir que a auxiliar foi quem falou em fugir, se ela não quisesse a fuga não cantasse perto dele. Ali ele parecia estar bem perto da descontração. Mas parecia que ele não sabia fazer isso. Ele era desesperado demais para esquecer seu lugar no mundo. Sua risada saia com peso e seus gestos demonstravam a pouca sutileza e nobreza de sua alma.

Havia, em uma das camas, uma mulher que há 10 dias não sabia o que era usar do banheiro para fins demorados. Resultado: ela estava na iminência de fazer uma lavagem. Cheia de dores ela bradava, seus olhos diziam, pelo momento mais escatológico de sua vida: 10 dias de comida retirados de uma só vez de seu corpo, era o que ela mais queria. Afinal, ‘Tylenol’ de saquinho não burlava a dor por inteiro. Ela queria a invasão e a retirada.

Não sei quanto tempo, se muito ou pouco, as coisas permaneceram daquela forma. Eu tive alta do aerosol e parti, sem saber muito bem do que me adiantou a sala de espera.

sexta-feira, 20 de março de 2009

O trato

Sim, senhor.
Vou fazer exatamente como foi combinado. Organizarei os arquivos, farei o relatório sobre os últimos dados entregues, lembrarei também de encaminhar toda a documentação para esta empresa.

Parti em busca de um prato de comida barato e que não me desse tanto prazer.
Me satisfiz. Encontrei o banheiro com pouco branco nas paredes, com muito papel nos cestos e com muitas mulheres tentando encontrar sua beleza num espelho que já quase nada refletia. Cabelo pra cá, pra lá, um pouco de água e batom nos lábios, pra trás, um pouco de lado. Pronto. Estava, a meu ver, refeita para então voltar a tratar da minha vida de arquivos.

Atravessei a rua estreita. O calor do sol assinalava que ainda iria brilhar por toda uma tarde, o que fazia lembrar que toda uma tarde de papéis me aguardavam e eu teria mais tempo pra esquecer as lembranças daquilo que chamei amor por mais dias que o trato feito comigo.

Foi inevitável perder à tarde de esforço cansado de vista ao deparar-me com estas memórias do que não foi.
Aborto de amor sufoca os olhos, mas dá viço novo à pele. Quando eles vão, eles levam a expectativa futura, mas deixam o que havia antes e que não sei como se solidificou enquanto. Eles deixam o rastro pronto para concluir que o que é bom é o de agora, o que se quis soma-se ao pretérito perfeito.

Eu já não ia mais cumprir o que havia deixado bem claro ao telefone. Meus pés me levavam para uma parte do centro que só eu julgava ver beleza.
Cheguei lá, sentei-me, olhei para os pombos sorrateiros em meio à multidão de passos. Eles comiam sem fim. Voavam sem fim. Ficavam sem fim. Iam e voltavam, parecendo que dava pra fazer o mesmo.
Não, eu não queria fazer o mesmo. Agir disfarçadamente, voar alto e depois voltar, voar alto com alimento na boca e voltar baixo, satisfeito. Eu não me sentia como os pombos, só compartilhava com eles o fato de não pertencer a ninguém, mas eles além disto pertenciam ao lugar. Eles poderiam até ter nome, pena que ninguém os dava.

Acendi um cigarro depois da terceira tentativa. O desta vez não tinha motivos para ganhar fumaça e fim, a tarde estava quente e eu já estava entendendo o que se passava.
Eu não queria ser pombo, não queria correr o risco de ser nominada, de ter as marcas de meu corpo atribuídas ao que sou. Queria não fazer sentido e puder voar, era o que queria.

Já não fazia mais sentido, só faltava voar.

Percebia que para fazer isso meus olhos teriam que deixar de ter peso e inchaço, minha pele já apontava para o que estava acontecendo na minha alma. Eu queria ser tomada de todo pelo vôo. Aquele cigarro não ajudava, resolvi tomar água de coco, para entender melhor o que é engolir. Apaguei o que estava acesso na minha mão, juntei minhas moedas e comprei coco de copo.
Bebi como quem tinha sede de voar.
Voei até a praça onde nada faz sentido. Lá chegando não vi pombos e sim pessoas que iam e vinham, pessoas que queriam provocar, que queriam comprar ou vender. Elas não voavam. Só eu voava.
Olhei para o pequeno teatro, o maior de todos. Vi charme onde existe, quis aterrissar lá dentro, mas o vôo que me tomou aquela tarde, não me fazia ir até lá em cima para depois pousar. Fiquei embaixo mesmo, achando e sentindo que ainda voava.
O vôo das causas tristes se transmutou em vôo da solidão feliz, eu sentia cada célula minha me revelando, eu sentia a revelia do que sou. Afinal, acabara de descobrir que eu queria mesmo era voar. Ninguém voa sem saber de suas asas, ninguém aterrissa sem saber da força de seus pés, não se domina o vôo sem saber de si.
Eu já voava, vi - sim, senhor- na vitrine da loja, meus pés fora do chão.

domingo, 15 de março de 2009

O meu coco da infância:

Eu tinha apenas quase cinco anos quando descobri o quanto era bom se importar com algo que tendesse a uma personificação. Ou, como era bom cuidar de alguém, de algo.

Nessa infância, de grande quintal carregado de pulgas, tínhamos dois coqueiros que acenavam dia-a-dia suas palhas e sua altura a nós, família, que habitava a casa de número 20.

O jardim era das cadelas, o quintal, das galinhas, os dois eram dos coqueiros e a casa era da gente, no entanto para brincadeira até os muros serviam, o trás muro também assim como a rua fácil de acessar. Além de tudo, o limite do céu era por nós corrompido, na árvore driblávamos a gravidade e enganávamos aquele que inventaram para prender crianças na terra. Nem lembrávamos que aquele bairro, no qual a casa se situava, nunca deixou de ser perigoso. O perigo só ronda aqueles que lembram dele. Não tínhamos medo de quase nada.

O maior dos meus medos era o de ficar sem ter um motivo pra acordar. Lembro. Daí que surgiu a vontade de ajudar uma coisa a ser gerada. Eu escolhi no meio do delírio infantil, que delira a ação por não saber dos processos, algo que me fizesse sentir a vida permanecer. Talvez o meu maior medo fosse o da morte.

Acabei escolhendo um côco para criar.

Era um coco bem pequeno, que por não fazer sentido pra mim ele ter ido ao chão com tão pouco tamanho, acabou sendo por mim adotado.

Eu, todo dia, acordava pensando no coco, conferia se o coquinho estava bem acomodado. Acreditando que o calor faria crescer, envolvia-o numa camisa velha.

Isto tudo durou até o dia em que eu fui alertada pelas meninas que aquilo nunca daria certo.
Foi então que eu peguei o coco com a firmeza de quem acabara de aprender qual o lugar dele e joguei lá perto do muro, mais pra perto da árvore. Daí então, em alguns daqueles dias posteriores a saída do coco do seu ninho, eu sempre lembrava de fitar aquele filho por alguns instantes mais.

Isto ocorreu até o dia que outra coisa passou a me interessar mais, que outro brinquedo, que não é brinquedo, tomou formas de me mover.

E sem coco continuei, mas não me desfiz dos mistérios que são bons de descobrir.

Fôlego

A matina ainda era escura, quando tomei as forças dos meus punhos para dedilhar num teclado a minha muita vontade de não parar de alinhar letras, de alinhavar meus próprios acordes.
Como nunca sinto a manhã chegando, vou sempre me embreagando de sono e idéias, permiti que o céu clareasse um pouco para aí sim, eu ir dormir.

Mas antes disto eu quis pulsar diante do branco da tela.

Era minha vez de ser guiada por um fôlego meio cego que me apontava para uma forma bonita de expor o que se vive, o que sai dos meus poros. Estou eu aqui e este escrito que transcorre no sentido de ser apenas o primeiro. Uma espécie de nota de abertura para que eu me sinta a vontade para que me invadam.