sexta-feira, 20 de março de 2009

O trato

Sim, senhor.
Vou fazer exatamente como foi combinado. Organizarei os arquivos, farei o relatório sobre os últimos dados entregues, lembrarei também de encaminhar toda a documentação para esta empresa.

Parti em busca de um prato de comida barato e que não me desse tanto prazer.
Me satisfiz. Encontrei o banheiro com pouco branco nas paredes, com muito papel nos cestos e com muitas mulheres tentando encontrar sua beleza num espelho que já quase nada refletia. Cabelo pra cá, pra lá, um pouco de água e batom nos lábios, pra trás, um pouco de lado. Pronto. Estava, a meu ver, refeita para então voltar a tratar da minha vida de arquivos.

Atravessei a rua estreita. O calor do sol assinalava que ainda iria brilhar por toda uma tarde, o que fazia lembrar que toda uma tarde de papéis me aguardavam e eu teria mais tempo pra esquecer as lembranças daquilo que chamei amor por mais dias que o trato feito comigo.

Foi inevitável perder à tarde de esforço cansado de vista ao deparar-me com estas memórias do que não foi.
Aborto de amor sufoca os olhos, mas dá viço novo à pele. Quando eles vão, eles levam a expectativa futura, mas deixam o que havia antes e que não sei como se solidificou enquanto. Eles deixam o rastro pronto para concluir que o que é bom é o de agora, o que se quis soma-se ao pretérito perfeito.

Eu já não ia mais cumprir o que havia deixado bem claro ao telefone. Meus pés me levavam para uma parte do centro que só eu julgava ver beleza.
Cheguei lá, sentei-me, olhei para os pombos sorrateiros em meio à multidão de passos. Eles comiam sem fim. Voavam sem fim. Ficavam sem fim. Iam e voltavam, parecendo que dava pra fazer o mesmo.
Não, eu não queria fazer o mesmo. Agir disfarçadamente, voar alto e depois voltar, voar alto com alimento na boca e voltar baixo, satisfeito. Eu não me sentia como os pombos, só compartilhava com eles o fato de não pertencer a ninguém, mas eles além disto pertenciam ao lugar. Eles poderiam até ter nome, pena que ninguém os dava.

Acendi um cigarro depois da terceira tentativa. O desta vez não tinha motivos para ganhar fumaça e fim, a tarde estava quente e eu já estava entendendo o que se passava.
Eu não queria ser pombo, não queria correr o risco de ser nominada, de ter as marcas de meu corpo atribuídas ao que sou. Queria não fazer sentido e puder voar, era o que queria.

Já não fazia mais sentido, só faltava voar.

Percebia que para fazer isso meus olhos teriam que deixar de ter peso e inchaço, minha pele já apontava para o que estava acontecendo na minha alma. Eu queria ser tomada de todo pelo vôo. Aquele cigarro não ajudava, resolvi tomar água de coco, para entender melhor o que é engolir. Apaguei o que estava acesso na minha mão, juntei minhas moedas e comprei coco de copo.
Bebi como quem tinha sede de voar.
Voei até a praça onde nada faz sentido. Lá chegando não vi pombos e sim pessoas que iam e vinham, pessoas que queriam provocar, que queriam comprar ou vender. Elas não voavam. Só eu voava.
Olhei para o pequeno teatro, o maior de todos. Vi charme onde existe, quis aterrissar lá dentro, mas o vôo que me tomou aquela tarde, não me fazia ir até lá em cima para depois pousar. Fiquei embaixo mesmo, achando e sentindo que ainda voava.
O vôo das causas tristes se transmutou em vôo da solidão feliz, eu sentia cada célula minha me revelando, eu sentia a revelia do que sou. Afinal, acabara de descobrir que eu queria mesmo era voar. Ninguém voa sem saber de suas asas, ninguém aterrissa sem saber da força de seus pés, não se domina o vôo sem saber de si.
Eu já voava, vi - sim, senhor- na vitrine da loja, meus pés fora do chão.

4 comentários:

  1. tão denso, tão belo. a net é lenta aqui. depois comento melhor. bjs

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  2. eu sempre enxerguei asas por debaixo de teus vários braços. é preciso que se possa perder algo, deixar algo para trás para que o vôo se realize. uma mulher que nem você deve, todos os dias, lustrar suas asas, retirar, suavemente, todas as penas caducas. e você iniciou esse caminho. com suas pernas também aladas. lindo ot eu texto, ele fala da Márlia que sempre antevi. já, já seguindo para Natal. bjs

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  3. "...Eu não me sentia como os pombos, só compartilhava com eles o fato de não pertencer a ninguém..."

    Ótimo texto.
    Parabéns!

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  4. olá márlia, estamos perto. e o próximo mando ao papicu que pariu. quando eu tiver tempo de digitar a coisa. ela me doía demais e aí vomitei. mas só esrevo no papel, se tivese pc talvez escrevese nele, não sei. gosto de papéis, sem pautas ou linhas, que aí eu posso voar. eu sou uma borboleta. um dia e fim.

    seu texto é recheado de incríveis aforismos onde me encontro, onde pouso. e o conjunto da obra é fantástico. foi muito bom receber sua visita, assim pudeme re-visitar. entrar em crisis, num sentido platónico.

    ah. tou na praia do futuro. que maravilha descobrir a casca de noz literária. ufa! que tudo ultrapasse a zpl que de zona e liberada não tem nada. tou pensando em poesianique-piquepoema. depois digo a vc, a glória, entre outros, e vamos nos agitar.

    a poesia está nua. e grita. e quer voar.

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