segunda-feira, 12 de outubro de 2009

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Mudei desde o primeiro dia que vim ao mundo, nasci vermelha, com bochechas grandes, rugas, um bebê feio e sem dentes. Minha mãe me amou mesmo assim. Não sei quem pôde amar mais, a que me carregou ou o que me quis. Sim, porque ele queria mais um filho , ela sim, mas bem menos. Elas também me amaram muito, por isso que sou tão devota.

Fui crescendo olhando o mundo como se ele fosse só aquela rua e a escola, e, também, a piscina do clube, o espelho da academia. Quem olhava via que eu carregava um ar de vergonha e de desamparo, de medo, mas vontade de ousadia, ousadia de vontade, podia-se ver um prazer enorme em chegar e um olhar que queria ver tudo.

Tinha cachos dourados e pele bronzeada, veio comigo. Tinha risada engenhosa e franjas curtas muito mal cortadas, era uma dessas crianças que cortavam gramas, cabelos, papéis. Atendia aos chamados das vozes femininas que enchiam a casa.
Não gostava de escutar críticas, por isso sempre andei na linha, quando não andava caía e doía bem no osso. Adorava a transgressão involuntária que vinha sempre depois das 19h, em cima das árvores, enquanto esperávamos a disposição paterna se deslocar pra nos salvar das areias já escuras e dos monstros imaginados da Escola.

As bananadas doces e brancas das manhãs me faziam crescer, e com um tempo ganhei a altura que sonhava ao abrir a geladeira e querer ver as coisas de cima. Certa vez, quando ainda tinha pouco mais de um metro, abri a geladeira e desejei vê-la de cima. Puxei o banquinho dos áfazeres de pai, e, ainda de geladeira aberta, fiquei a postos mensurando como seria ver aquele depósito gelado dali há alguns anos. Era o dia de querer ser grande.

Não acordei grande, mas fui desejando correr, ir mais longe, ver do alto, ter animais, ter filhos, amores, comer cobertura de bolo, tocar nas estrelas, nunca mais ter piolho.
Desejava nunca me separar das minhas irmãs, nunca ter que pedir no sinal, nunca deixar de ir visitar minha mãe no trabalho, nunca mais cortar o cabelo da próxima boneca -embora admitisse a enorme beleza das madeixas encurtadas, era ruim saber que não se podia voltar atrás. Pensava uma forma de encurtar os cabelos delas sem precisar cortá-los, achava uma pena cabelo de boneca não crescer.

Éramos as três sempre as mais ousadas que via por perto. Queríamos sempre ter em nós a marca da diferença, da criação, da vida bem vivida. Reuniamos em nossa casa, com muita facilidade, uma multidão de meninos empiolhados e cheios de sorrisos pra brincar, cantarolávamos o sucesso das rádios em cima dos muros, como se a vida não passasse dos limites da nossa voz. Não sabíamos o que nos aguardava, mas estavámos sempre certos que a aventura seguinte valeria.

Hoje me dei conta que sou adulta faz tempo e que ser criança foi das coisas melhores já feitas. Não largo a infância porque tenho nela a impressão de que tudo se emenda, que uma canção de verão cantada com força é uma das coisas mais úteis de se viver.

Tem outras coisas também que dão utilidade à vida. Gestos, amigos, risos, invenções, folhas em forma de corações, rodeadas de flores amarelas, tudo na terra cinza, traz à lembrança de uma sôfrega e carinhosa infância, debaixo de um pé que não tinha fim; me lembra que tudo começou em mim junto com aquela raíz extensa que optou livremente por se enraizar e manter-se viva. Aquilo arvoriava o lar simples, complacente e serenado. Nunca, nós, árvore e arvorados, soubemos dos pontos finais e do final das alturas, de alguma forma tudo nos foi ilimitado e burlesco, burlativo, bucólico. Borrávamos até o céu se quisessemos, adestrávamos formigas, cozinhávamos onde queriamos, reinventávamos as regras, recordavamos um passado que não era nosso, faziamos qualquer coisa.

Tenho a sensação de que os primeiros anos nunca saem de nós. Tenho a sensação de que pensar nisso torna os dias mais entregues, com noites bem dormidas, com brincadeira, brinquedo, força e risos.

Um comentário:

  1. Há de ser realmente um comentário, não sabia que tinha o dom p/ escrever tão bem, e eu? estou abismada com o dom, com a capacidade, com a fantasia!

    Adorei "mulher" rs.
    e já foi adicionado nos favoritos, é claro, Bjs tudo de bom.

    Que essa cabecinha não pare..
    Que permaneça!

    Ah o dom que tem as letras e palavras...
    Eu as amo!

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