quarta-feira, 24 de junho de 2009

Coqueiro

Eu repito, depois de ouvir multidão em silêncio chegando: de hoje não passa.
Esperei os ponteiros se alinharem, o burro passar, a milicia assobiar em marcha não contida.
era a hora, 15h para a meia noite. Hora de partida e hora de chegada.

Perdi meu cachorro, o cavalo bronco, a vaca sem teta, a casa de abrigo e o que não tinha dentro. Era hora, já. Nunca vim de lá como estive naquele dia vindo. Andava em trote desimbestado, via o mar separando céu ao longe. Lembrava de quando aprendi a enfileirar palavras e a cantar com a noite, até o dia vir de dentro do mar.

Depois que me deixaram, porque eu não fazia mais sentido pra ninguém, porque eu tinha me apegado ao coqueiro e assim não parti, eu fiquei na casa de solidão a porta e de música de desgosto a sonar.

Eu sonhava com nada, queria só dar as aulas de escola a beira-mar. Antes eu achava que dar aulas provocava a repetição do sonho de desejo. Mas cada vez mais eu só praticava o sonho de dormida. Tinha muitos pesadelos, por sinal.

Conheci Mara Lúcia. Ela invadia meus dias e lembrava que coqueiro com vento faz barulho de alento. Ela nem era professora, fora minha aluna. Crescera e não tinha mais pra onde ir, só existia uma sala de aula. Embora quisesse descobrir mais livros e fazer coisa mais que ter filhos para a pesca, Mara não pôde. Ela descobriu comigo o que tem entre as pernas e soube o que não queria. A jangada de seu pai não a levava às nuvens. Ela tinha medo da estrada e de se afogar no mar que envolvia aquilo tudo, mesmo não sendo uma ilha.

Eu ilhei-me junto a ela, porque aqueles coqueiros faziam sombra boa e eu já até concordava que não precisava mais sonhar.

O que me fez partir não foi tudo ser levado de mim, nem vontade de aqui chegar. Mara Lúcia não quis vir comigo, também não foi isso que me embarcou na caminhada. Cortaram o coqueiro, e eu aqui vou plantar um outro. Soube ontem que Mara fugiu com caminhoneiro, era por isso que ela temia a estrada, pensei logo que recebi a notícia.

3 comentários:

  1. Pra falar da medíocre situação humana.

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  2. Márlia,


    Falaste bem.


    E em boa prosa poética com um "regionalismo todo particular seu". Social e idiossincrático. Assim fica bom.


    :)







    Beijos,







    Marcelo.

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  3. Márlia, que coisa mais linda! A bordadura de uma estória entremeada de detalhes tão singulares, tão reveladores de vida! Esses personagens invisíveis sabem fazer a partilha entre o gesto e palavra. Vivem ilha por saberem qual o lugar que dá sombra aos seus corpos, enquanto não surge um camioneiro e uma estrda. A jangada pode levar as nuvens, depende dos ventos. teu texto me levou para perto de mim, abraçada por um continente de poesia. bjs jovem e talentosa escritora.

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