quinta-feira, 9 de abril de 2009

Ela

Desde que nasceu sabia que ninguém cuidaria tão bem dela como ela cuida dos outros. Desde que nasceu sua consciência, claro. Por que quando nasceu, embora ela diga que lembre, não sabia que havia chegado num dia de festa alheia. Era quase a hora dos convidados chegarem e ela veio antes de todos eles, quando sua mãe tinha que transportar panelas de festa, além de filho pronto na barriga. Filha, no caso, era ela.

A festa era do irmão e era festa de primeiro ano. Se juntar a família que triplicaria de tamanho em 10 anos não era tarefa fácil. E estragar a festa do irmão era tarefa mais difícil ainda. Ela veio sorrindo e dizendo ao mundo que olhos podem brilhar quando há turves, isto centímetro a centímetro. Ela sabia que aquilo ruim era sofrimento, que dor quando dói marca para sempre e que os olhos aflitos devem servir para enxergar coisas que facilitem a vida de alguém. Foi com isto que ela aprendeu que poderia ter uma missão, ela escolheu a sua: cuidar. Era segunda mãe para todo o rebento que se sucedeu no ventre materno, foram mais 12, com ela e o aniversariante, somavam 14.

Moleca de trocar fraudas de moleques, foi crescendo e fazendo sua missão de passear no mundo aflita e ajudando coisas a permanecerem intactas. Ela remexia a vida para que esta ficasse. Cresce menina, cresce. Por que tu tem que dar a luz para estes olhos miúdos que não vieram ao mundo no dia de outro aniversario. Ter chegado logo ali deu a ela o lugar de protagonista da família, o lugar de quem veio para mudar, por que nem o aniversário estava que prestasse.

Ela foi...ela foi para cidade bem grande e eu não sei, nem consigo imaginar, como seus pais ficaram diante daquilo. Acabei de lembrar, disse-me ela outro dia, que sua mãe estava operada e ela mesmo assim foi, ela acha que isto foi grandioso, por que ali ela rompera com sua primeira maternidade, a que ela não quis.

No colégio de sua adolescência, exatamente quando ela julgava dar um passo compatível com o tamanho de suas compridas pernas, ela soube continuar sua missão no mundo. Mesmo tendo sentido que abandonara os iniciadores dessa ela não a deixou. No instante do abandono era possível que ela houvesse desistido da razão de sua jornada, ela queria o mundo. E conquistou aquele mundo de silêncio e mulheres, de juventude ou velhice, por meio daquilo que a motivara.

Foi ajudando, cuidando, que ela desbravou a cidade com seus olhos aflitos, descobriu que quase nada separava a riqueza da pobreza, a pouca idade da muita idade. Por que meninas ricas eram suas amigas e freiras também, embora tivesse descoberto que é muito o que difere os lugares, as pessoas que os habitam, a beleza que os formam.

Um dia ela volta para o lugar de suas lembranças de açude e seca, e lá encontra mais alguns de seus filhos, ela não os gestava, mas os garantia no mundo. Não havia mais quarto pra ela, então achou conveniente saber de outro abrigo. Optou pela capital. Arrumou mais uma vez suas malas e foi achar seu novo lugar. Em pouco tempo achou que aqui cabia mais uma família.

A missionária, em dívida, trouxe todos o os que pôde, o mais rápido possível. Seus filhos ficaram mais próximos, todos eles. Entre amizades feitas e namoros desfeitos, ela conheceu um rapaz acadêmico e viu nele complacência e uma firmeza tímida. Encontravam-se, ou de chegada ou de saída.

De alguma forma ela resolveu cumprir sua missão também com ele. Eles casaram-se. Seus olhos grandes e sempre comovidos olham o mundo como quem sonha, como quem precisa fazer afeto, mesmo fazendo pouco sentido. Há n'ela uma bondade pronta, uma forma de pulsar frenética, o frenesi do auxílio, é visível n'ela o quanto ter esta missão cansa a espera, ela espera e quando quer alcança.

4 comentários:

  1. é a segunda vez que comento esse teu texto e ele se apaga. imagino que esse campo fértil de generosidade, esse afeto peregrino deva ser de tua mãe. amei teu texto, ele vai tecendo em cada palavra um lirismo delicado, vai conduzindo o leitor pela mão e pela corda vibrátil do coração. belo

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  2. sim, belo. acho que vc não espera do outro o que lhe entrega. penso que (se) entrega. um dia aprenderemos palavras como estas
    : outro, alteridade, empatia... até lá...

    beijo :)

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  3. lindo blog. Um texto bonito, inteligente, delicado. Parabens . É bom voltar aqui.
    Parabens tb, pelo dissertação do seu perfil.Gostei daqui, gostei de ti.
    Apareça sempre é muito bom ter vc por lá.
    Maurizio

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  4. Gosto dessa sensibilidade no texto. Aliás este texto me lembra alguma história contado por meu avô. Abraço!

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